17/08/2015

AS HISTÓRIAS DO MAESTRO - JACQUES DELACÔTE, parte 1

Entrevista por Helena Piccazio.


Jacques Delacôte, foto do site oficial

O Maestro Jacques Delacôte veio a São Paulo para reger a ópera Eugene Onegin, de P. I. Tchaikovsky, no Theatro Municipal, em maio e junho de 2015. Durante os ensaios ele nos divertiu contando algumas histórias. Ótimas, adoramos! Daí veio a ideia de entrevistá-lo.

Marcamos de nos encontrar às cinco e meia da tarde. Ele me recebeu com o sorriso simpático de sempre e tirou do bolso um papelzinho cheio de anotações: “tentei lembrar de umas histórias, tem essa, aquela, fiz a minha lição de casa!”




LA BOHÉME

Jacques Delacôte - Eu não vou dizer onde, o teatro, não importa. Um teatro importantíssimo, grande, famoso! Uma das melhores orquestras do mundo! O coro sensacional! Mas aconteceu o seguinte: eu chegava sempre, hábito meu, uma hora antes de começar o espetáculo. Eu passava sempre pelo palco e lá, uma tradição, as crianças - ‘Parpignol, parpignol, parpignol’ - estavam sempre fazendo um último ensaio antes de começar. Um dia eu cheguei, cumprimentei todo mundo. Ah! maestro pra cá, maestro pra lá. E eu perguntei ao maestro do coro: “O menino que canta ‘Vo’ la tromba e il cavalin’ está aí?” E ele olhou e falou: “Não! Mas não é possível! Vou ligar na casa dele.”  Mas tem o número 2. “O número 2 tá aqui?” Olhou. “Não! Mas como é possível? Vou ligar também.” Tinha o número 3, uma mocinha, uma gentileza! Bom, antes de deixar o palco eu falei para eles: “Quem sabe, talvez eles estão no cinema.” Todo mundo começou a rir. Deixei o palco, fui para o camarim, me sentei. Lá tinha um relógio, tá bom, vamos respirar. E lá de repente chega um foguete! Para com dificuldades na entrada do camarim. Era o maestro do coro de crianças e ele fala “Maestro, maestro, o senhor tem razão!” “Eu? Eu tenho razão de quê?” “Sim, eles estão no cinema, todos os dois, e juntos!”

Helena Piccazio - Mas eles chegaram pra récita depois?

JD - Não. Faltaram, ficaram lá no cinema.

HP - Então foi o número 3 que fez?

JD - Essa mocinha adorável, e tava feliz com esse desafio “Hoje EU canto ‘Vo’ la tromba e il cavalin’.

MADAMA BUTTERFLY E O SOLO DE HARPA

JD - Eu não vou dizer onde, nem o nome do Herr Professor. Primeira ópera na minha vida. Eu tinha ganho a medalha de ouro em Nova York, na competição Dimitris Mitropoulos para regentes. Então eu fui contratado e eles me perguntaram o quê que eu gostaria de reger. Eu falei: “Butterfly?... difícil... Butterfly? Butterfly. Tá bom.” Não tinha ensaio de orquestra, primeira ópera na minha vida e uma casa mundial, famosíssima. Eu tinha estudado muito bem, tava pronto, eh, só estava um pouco lento, naquela época. Bom, no primeiro ato chega o Diplomata Sharpless e pergunta a Goro, o businessman japonês, o espertão: Ed é bella la sposa?. Antes disso tem um pequeno solo de harpa (e canta a passagem), 'Ed e bella la sposa?', 2 clarinetes, 'Una guirlanda di fiori freschi'. Poucos compassos antes desse pequeno solo de harpa - vital! - eu me giro um pouco assim, a harpa tava lá e o Herr Professor tá cochilando. A canopla tava apagada. O colega dele, clarineta, se gira e o chama “Professor, Professor!” Tarde demais, ele não toca. Teve um pequeno buraco. Eu sobrevivi, isso é o mais importante. O segundo dia, do segundo espetáculo, Madame Butterfly, eu estou dentro da (casa de) ópera de manhã e de longe eu vejo se aproximar o Herr Professor, e ele me cumprimenta de longe “Oh, Maestro!”, e eu pergunto para ele, um pouco maliciosamente, “Professor, hoje à noite o senhor me toca esse solo?” “Maestro, hoje não, hoje eu durmo em casa!”

Jacques Delacôte,
foto do site oficial
HP - E na hora da récita, ele tocou?

JD - Num tava lá! Tava em casa, uma aluna dele tava lá.

HP - E tocou?

JD - Tocou. Ela não dormiu. Engraçado, né?

PEQUENO MAESTRO

JD - Quando eu debutei na Grã-Bretanha, foi num pequeno festival na Irlanda, num vilarejo de pescadores chamado Wexford, liiindo, lindíssimo, um teatro pequeno lindíssimo também, e eles trabalham muito bem, me convidaram muitos anos atrás, e eu regi lá. Foi assim que depois o Covent Garden me chamou. E lá em Wexford, depois de um espetáculo em particular, eu estava cansado, voltei pro camarim, e alguém bateu na porta. “Por favor, entre!”, e eu vi a porta se abrir e lá, de repente, tinha um menino alto assim (era pequeno), e eu vi que ele tinha bem perto do peito uma batuta de regente d’orquestra. Tava elegante, gravata, tudo. Educadíssimo. Pediu desculpas por incomodar, e eu falei “Não me incomoda”. E ele falou o seguinte: 
- Maestro, eu gostaria muito de trocar a minha batuta com aquela do senhor, troca de batutas.
- Eu acho que eu tenho uma outra ideia, até melhor. Eu vou te dar minha batuta, aquela que regeu o espetáculo agora. E você pode ficar com sua batuta. Agora você tem 2 batutas. Tá bom assim? Negócio fechado?
Eu peguei minha batuta e falei pra ele “Agora é sua.” Ele me olhou assim (um pouco assustado) e falou o seguinte: 
- O senhor é o maior maestro que eu já encontrei na minha vida!
- Você tem quantos anos?
- 9 anos de idade.
- Você é muito gentil comigo, generoso demais. Eu te desejo tudo de bom. E agora você tem 2 batutas, boa sorte!
- Eu nunca esquecerei o senhor! Nunca!
Tudo em inglês, e falou mais uma vez “Muito obrigado! Muito obrigado!” e se mandou. 
14 anos mais tarde, estou fazendo uma turnê com a chamada Royal Opera House Covent Garden. A turnê começa na Coreia do Sul, Seul, e de lá vamos pro Japão. Eu tinha 50% da turnê pra mim. Sansão e Dalila e Turandot. Eu começo com Sansão em Seul, Jon Vickers, cantor, o canadense. O primeiro espetáculo acaba e eu agradeço a orquestra, deixo o palco, cansado. E lá, uma voz atrás de mim fala “Maestro!” eu me giro e eu vejo um rapaz jovem, elegante, grande, um gigante! Com, aparentemente, a namorada dele, uma garota sul-coreana, roupa tradicional, uma beleza. E ele se aproxima de mim, mas somente um pouco, educação... Não chega muito perto, fica lá, e fala o seguinte: 
- Naturalmente o senhor não vai se lembrar de mim mas, uma vez, depois de um espetáculo... - e aí eu parei o garoto e falei:
- Nããão... Wexford? O garoto de 9 anos com a batuta lá? Lá no peito? Era você?
E ele ficou espantado e falou:
- Mas o senhor se lembra?
- Claro que eu me lembro, você me visitou e quis trocar de batuta - e blá blá blá.
- Não acredito!
- Pode acreditar.
- Quando eu vi o poster ‘Royal Opera House, Samson and Delilah, conductor Jacques Delacôte’ eu falei pra minha namorada ‘É ele! É ele! Eu tenho que ir falar com ele! Obrigação número 1!’. E tô aqui. - ele disse, 14 anos depois.

HP - Uau... e ele se tornou regente?

JD - Não. É um homem de negócios, mas ele falou “A batuta tá em casa, sempre. É um tabu!” 

O MORCEGO EM HAMBURGO


JD - Uma vez eu estava regendo em Bruxelas por um período bastante longo, umas 6 semanas. Mas no meio desse período eu tinha um concerto de gala na ópera de Hamburgo, para crianças doentes, deficientes, e tal. Tava combinado com Bruxelas que eu poderia deixar a cidade para fazer o concerto. O problema maior para mim é fazer uma mala, eu não sei fazer uma mala! Eu tinha de reger em Hamburgo principalmente todos os grandes números da ópera O Morcego, Johann Strauss. Abertura, final, cenas com coro, todo mundo, bom... Minha partitura, a edição chamada “crítica”, é simplesmente uma partitura desse tamanho mais ou menos (grande!), e de cor mais ou menos assim, um pouco preta, um pouco marrom, não importa. E lá em Bruxelas, a hora de sair para Hamburgo chegou, e eu tinha combinado com minha mulher de encontrá-la em Frankfurt e ir de lá para Hamburgo juntos. Isso também aconteceu. Chegamos em Hamburgo, no Hotel Plaza, eu me lembro, perto da ópera, naquela época. E lá o telefone tocou “Maestro, bem-vindo, aqui é a ópera de Hamburgo, nós temos um ensaio com o coro e solistas em 2 horas.” “Tá bom, tá bom, estarei lá, tá tudo bem, tô pronto.” E eu busco a partitura do Morcego, Die Fledermaus. Eu tinha uma..., essa coisa, um saco, assim, desse tamanho...

HP - Uma mala em forma de saco?

JD - Isso, uma mala em forma de saco. E eu vi O Morcego, a partitura, peguei esse “livro”: era o livro do telefone de Bruxelas.

HP - E aí?

JD - E aí, minha mulher se precipitou pra ligar pra mãe dela no Rio pra contar.

HP - Rio de Janeiro?

JD - Sim, de Hamburgo pro Rio de Janeiro pra contar o último milagre do meu marido. Agora ele está regendo O Morcego segundo o livro de telefone de Bruxelas. Eu “roubei” a lista telefônica de Bruxelas. Coisa idiota! Eu fui mais tarde, com discrição total, para a recepção do Hotel Plaza e falei “Não fala com ninguém, hein?” Contei rapidamente essa história e falei: “Por favor, manda esse livro de telefone pra esse endereço em Bruxelas, eu roubei o livro de telefone”.

HP - Então o senhor ficou mais preocupado em ter tirado o livro de lá do que estar sem a sua partitura?

JD - É.

HP - E regeu de cor?

JD - Eu acho... eu não lembro muito bem, tava tão confuso por causa dessa bobagem! Inacreditável. Horrível, horrível!

STRAVINSKY E PIATIGORSKY

HP - O senhor citou uma história com o Stravinsky?

JD - Sim. Stravinsky. Um dia ele perguntou ao violoncelista maravilhoso, Gregor Piatigorsky, um artista!:
- Senhor Piatigorsky, eu gostaria de escrever um concerto pra violoncelo, mas o senhor tem que me ajudar.
- Ajudar o senhor? Seria pra mim um privilégio! - o Piatigorsky falou - Como não?
- Olha, quando as royalties chegarem, vamos fazer 50/50?
- Não, não, fora de questão, maestro, pelo amor de Deus, ajudar o senhor pra mim vai ser um privilégio enorme!
- 50/50.
Igor Stravinsky, foto de Irving Penn
- Não.
- 50/50! Condição si ne qua non!
Piatigorsky não respondeu. Stravinsky começou a explicar:
- Olha, eu sou o compositor, então, 95% das royalties são pra mim, como compositor. Restam 5%, então vamos fazer 50/50 desses 5%!.
Ah, Stravinsky...

HP - O senhor chegou a conhecê-lo pessoalmente?

JD - Não, ele morreu em 71, e eu acabava meu estudo em Viena, nunca encontrei Stravinsky, infelizmente. Mas eu conheci o maestro Vladimir Golschmann* em Nova York, ele era membro do júri quando eu ganhei a competição. O brasileiro de Carvalho também, tava lá, Eleazar de Carvalho era membro do júri, eu encontrei com ele, falei com ele também. Como um militar!

HP - O senhor sabe que ele era militar, ele começou a tocar na banda militar, porque o pessoal da banda comia melhor do que os outros, aí ele resolveu que queria tocar na banda e começou a tocar tuba.

JD - Tuba?!

HP - Ele era tubista da banda do exército.

JD - Interessante...

*Vladimir Golschmann foi o maestro francês que Serguei Diaghilev (importante empresário ligado aos mais famosos balés de Stravinsky) contratou para reger a Sagração da Primavera em 1920, pela primeira vez em Paris depois de sua estreia em 1913.

PIERRE MONTEUX, SÁBADO DE MANHÃ

Pierre Monteux, foto extraída daqui
JD - A senhora já ouviu falar do Pierre Monteux? Evidentemente, Pierre Monteux. Com esse bigode, o gran-senhor dos maestros. Bravíssimo, Pierre Monteux. E essa história me foi contada pelo spalla da London Symphony Orchestra, pequeno irlandês. E ele me falou o seguinte: “Monteux detestava ensaios sábado de manhã. Um ensaio sábado de manhã pra ele era um pesadelo”. Então, bem, tinham ensaios sábado de manhã também, e frequentemente o Monteux olhava pro pequeno relógio que ele tinha, e um sábado de manhã Pierre Monteux falou “Bom, senhoras e senhores, todo mundo conhece a obra, eu também, então, vamos acabar? Segunda feira tem outros ensaios”. O spalla, meu velho amigo Hugh...

HP - Uh! Eu acho que eu conheci ele!

Hugh Maguire, foto extraída daqui
JD - Maguire.

HP - É ele!

JD - Hugh Maguire! Adorável, excelente, maravilhoso! Hugh, eh! Hugh Maguire pulou como o diabo fora da caixa e falou “Maestro, que gentileza, maravilha, vou chegar bem mais cedo em casa, minha mulher vai ficar tão surpresa!”. Pierre Monteux: “Atenção! Talvez você fique muito surpreso!”

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Parte 2 desta entrevista
Parte 3 desta entrevista

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