31/08/2015

AS HISTÓRIAS DO MAESTRO - JACQUES DELACÔTE, parte 3

Uma selfie com o Maestro Jacques Delacôte.
Entrevista por Helena Piccazio.

Maestro Jacques Delacôte veio a São Paulo para reger a ópera Eugene Onegin, de P. I. Tchaikovsky, no Theatro Municipal, em maio e junho de 2015. Durante os ensaios ele nos divertiu contando algumas histórias. Ótimas, adoramos! Daí veio a ideia de entrevistá-lo.

Leia aqui a Parte 1 desta entrevista

CARLOS KLEIBER E MARIA CALLAS 2

HP - Como o senhor ficou amigo do Carlos Kleiber?
 
Maria Callas e Luchino Visconti
durante sua primeira montagem
da ópera La Traviata no Teatro alla
Scala, em Milão, 1955.
JD - Um dia eu estava regendo La Traviata no Covent Garden, uma remontagem da produção do Luchino Visconti, famosíssima naquela época. Eu estava tendo problemas com a soprano. Na minha opinião, ela se achava uma reencarnação de Maria Callas, sempre me falava “Maria para cá, Maria para lá”. Eu disse a ela:
- Por favor, seja Você Mesma número 1. E nunca Maria Callas número 2. 
Pelo amor de Deus!  
E depois, estava tudo tão lento, lento, lento... que uma hora eu falei:
- Não, assim não. Eu vou no meu tempo, se a senhora quiser vir comigo, tudo bem, senão eu vou no meu tempo mesmo assim.
O intervalo chegou, a atmosfera tava cheia de eletricidade, eu estava pronto pra explodir. Eu me virei - o Covent Garden é imenso - e lá na plateia tinha uma pessoa sentada, quieta como uma criança bem educada. Era Carlos Kleiber acompanhando meu ensaio. Ah! (com ternura) Eu fui até ele, me sentei ao seu lado e começamos a conversar. Ele me contou que também tinha tido problemas com essa mesma soprano - boa, muito boa, talentosa, mas... bom... E foi assim que nós viramos amigos, até a última carta que ele me mandou, pouco antes de morrer (ele me mostrou essa carta, trouxe consigo até São Paulo, cuidadosamente envolta num envelopinho plástico). Eu nunca-nunca-nunca ouvi uma música com a qualidade, o nível, como a que ele fazia. Tem uma gravação de La Traviata dele que é sensacional!

CARMEN QUE RI

JD - Um dia, uma casa de ópera muito importante me convidou para fazer a Carmen, já contei? Não? Eu aceitei e eles me pediram uma lista de sugestões de mezzo-soprani pro papel da Carmen, uma lista de tenores, barítonos, até diretor de cena. Mandei tudo pra eles, e fiquei aguardando resposta. Um dia chega um documento dessa casa de ópera dizendo “Carmen vai ser a senhora X, tenor senhor Y, etc” Eu fiquei tão triste, tão furioso, tão chateado! Não tinha ninguém da lista que eu mandei! Eu escrevi pra Carlos (Kleiber), pra contar:
- Olha, eles me colocaram a senhora X - nada contra ela - mas não é uma Carmen!
Ele respondeu: 
- É..., naturalmente, não é uma Carmen!
E ele usou a expressão miscast, um erro de casting. Carlos me contou que ele e a senhora X já tinham feito Carmen com Zefirelli, e que foi um desastre total. Carlos a odiava, ela fatalmente não gostava dele. E ele terminou a carta dizendo “Ela é La Vache qui rit” Você sabe o que é isso? Uma marca de queijo francês, a vaca que ri! Ela parece com o desenho! Quando encontrei a senhora X no primeiro ensaio, quase explodi em risos, la vache qui rit... Essa Carmen que eu fiz foi desastrosa, uma direção horrorosa! Um horror do início até o fim.

TEM QUE LER

HP - Eu gostaria de saber quais são os livros que mais influenciaram a sua vida musical, os que o senhor mais gosta, os que são mais importantes.

JD - Tem o livro do Swarowsky, meu professor, infelizmente eu não sei se esse livro já existe em outros idiomas. Foi escrito em alemão, naturalmente, Swarowsky era austríaco. Um livro ma-ra-vi-lho-so.

HP - Qual é o nome do livro?

JD - Se chama Wahrung der Gestalt, vou tentar traduzir: Respeito da Forma. Algo assim. É o livro mais importante do Swarowsky. 
Tem outro livro, igualmente magnífico, do Erich Leinsdorf, ex-chefe da Boston Symphony - um músico maravilhoso, uma cabeça igualmente maravilhosa, um saber gigantesco - que se chama The Composer’s Advocate, O Advogado do Compositor, o pinguim que gesticula. Ma-ra-vi-lho-so! No livro, Leinsdorf conta que trabalhou como assistente de Toscanini, e Toscanini conhecia Verdi pessoalmente. Ele fala ainda, sem citar nomes, de um maestro que rege o início do Requiem di Verdi como se fosse um mistério, lento, tudo lentíssimo, respeitando os pppp. É burrice, falta de conhecimento. Ele explica que Verdi escreveu 4 pianos, pppp, porque nunca confiou que os músicos italianos fariam piano o suficiente. Por exemplo, é bom saber disso! 1 piano só já está bom, não precisa ser essa coisa super misteriosa, não! Leinsdorf também fala da tradição barroca de escrever uma tercina e um ritmo pontuado ao mesmo tempo, explica claramente porque eles escreviam assim. Tem que encaixar. O ritmo pontuado é simplesmente um modo de escrever, deve soar uma tercina também. Ele conta a história da 4a sinfonia de Schumann (e canta), no movimento lento tem esses 2 ritmos diferentes ao mesmo tempo, e tinha um maestro famoso que exigia que a orquestra fizesse exatamente a tercina e o pontuado como escritos. Burrice, falta de conhecimento. É outro exemplo, interessantíssimo, tem que ler. 
Outro livro que eu recomendo, é o do compositor e maestro Manuel Rosenthal, sobre Maurice Ravel. Tem coisas nesse livro que ninguém sabe! Um conhecimento perdido! Muito interessante, tem que ler esse também. 
Vladimir Horowitz, Nathan Milstein, Gregor
Piatigorsky, Arturo Toscanini e Bernardino Molinari
a bordo do navio Rex.
 Ó, outro, ah! Piatigorsky: Meu cello e eu, pra morrer de rir (leia aqui). No livro, Furtwängler uma vez perguntou para Piatigorsky “Vamos fazer aula de dança?” E eles foram! Mas, depois de uma semana, a direção da escola de dança pediu pra os dois saírem, porque eram a pior propaganda do mundo! Sem nenhum talento! Foram pedidos para se afastar. Tem a história com Rachmaninoff: a Orquestra Filarmônica de Berlim estava fazendo um ensaio com Furtwängler e o ensaio não acabava mais. Sentado lá na plateia tinha uma silhueta obscura, com cabelo preto. E de repente essa criatura pulou, chegou no palco, abriu o piano e bang! tocou um acorde fortissíssissississimo e falou “Eu sou Sergey Rachmaninoff! Eu agora tenho um ensaio!” Coisas assim. Coisas do Furtwängler. Coisas do Toscanini. Como quando Piatigorsky fez um concerto com Toscanini, e os camarins eram próximos. O Piatigorsky percebia um vai-vem, bum bum bum bum, e pensou “Deve ser Toscanini. Mas Toscanini tão nervoso? E andando assim?” Finalmente chegou a hora de tocar, e eles se encontraram no corredor. Toscanini olhou pra Piatigorsky e falou: “Noi due, noi siamo due zeri!” (Nós dois, nós somos dois zeros!)

HP - Assim?

JD - Assim. Nem “Bom dia, como vai? Então agora a gente faz tal coisa” Nada, apenas falou “Nós dois, nós somos dois zeros!” Essa história me faz lembrar... Imagina a filha do Toscanini, Wanda Toscanini - que era um dragão - casou com o Horowitz, e ele tocou uma vez só com Toscanini, quando era muito jovem. Uma vez, nunca mais. Eu não consigo sequer imaginar algum entendimento entre a fantasia, a imaginação musical fenomenal do Horowitz e o Toscanini. Que fantasia musical que o Horowitz tinha, impressionante! E o toque, as mãos que ele tinha, um dom da natureza.
Vladimir Horowitz
Foto: François-Marie
Banier

HP - O senhor chegou a conhecê-lo?

JD - Não, não... Já faz talvez 15 anos, eu acho, que ele fez uma turnê e passou por Viena, e eu conhecia muito bem o diretor do Musikverein, que me contou “Quase fiquei louco com ele!” Durante o dia Horowitz dormia. E à noite começava a viver, tocava piano sem parar, e depois viver, viver, viver! Ia para restaurantes, viver, comer, beber, tocar piano se tivesse um piano. Horowitz falou uma vez que gostaria muito de tocar com Carlos Kleiber, com humildade total: “Eu gostaria muito de tocar com ele”.

HP - E não tocaram?

ABGEHAKT

JD - Não, não. Infelizmente. Bom, Carlos parou aos poucos, passo por passo até o fim definitivo. Eu lembro de uma carta dele dizendo “Eu não quero mais saber deles, nem deles, nem deles”. Eram orquestras. Ele usava uma palavra em alemão, típica dele: abgehakt. Essa história está Abgehakt, terminada, acabada de vez. Mas um tema também pode ser Abgehakt. E quando Carlos fez uma gravação sensacional do Freischütz, do Weber - Inacreditável, uma beleza! - as pessoas lhe perguntaram depois:
- Vamos fazer uma montagem?
- Não. Abgehakt
E nunca mais regeu o Freischütz, o Freischütz estava morto pra ele.

Carlos Kleiber
HP - Nesse caso, o abgehakt não era para a orquestra, mas para a música.

JD - Sim, para a música. Ele disse “Esse tema, Freischütz, está Abgehakt. Não existe mais pra mim. Acabou”. Triste, mas pelo menos nós temos essa gravação dele, inacreditável. Os mais velhos da orquestra de Dresden que me contaram.

HP - Foi com essa orquestra que ele gravou o Freischütz?

JD - Foi, a Staatskapelle Dresden. Eles me contaram que era difícil trabalhar com ele. Uh!... ele exigia tanto! Assim como exigia de si mesmo. Carlos também fez um Rosenkavalier sensacional, mas infelizmente essa não foi com a Staatskapelle Dresden. Digo infelizmente porque a ópera Rosenkavalier foi escrita pelo Strauss para orquestra de Dresden! Foi criada em Dresden, no teatro Semperoper. Que pena! É uma orquestra tão brilhante, fenomenal. Eu nunca esquecerei certas palavras deles. Uma vez eu estava pronto pra começar o segundo ato e uma sombra vup! passou por mim. Era um músico atrasado. Eu falei “A-ha! O senhor está escapando?” ele parou, virou e disse “Não, Maestro. Eu quero absolutamente tocar com o senhor. Porque o senhor faz música boa.” Aaaahhh... Imagina! Ah, isso é gentileza gratuita. Nunca esquecerei. Parece pouco, mas eles não falam esse tipo de coisa pra todo mundo.

KLEMPERER

Otto Klemperer. Getty Images.
JD - Oh! Eu esqueci Klemperer! É a última, eu acho. Eu fui muito estudioso, hein? (referindo-se à lista de histórias que trouxe). O Klemperer... Ele fez o Das Lied von der Erde, Gustav Mahler, mais bonito que eu conheço. Ah, a 9a sinfonia de Beethoven também, que maravilha! Bruno Walter e Otto Klemperer, os dois eram protegidos de Gustav Mahler. Mahler fez tudo para eles, para achar um contrato, um teatro, qualquer coisa, foi muito generoso. Bom, a história é que o Klemperer já estava velho, e estava gravando alguma coisa, sentado, e devagarinho começou a cochilar. A orquestra continuou, e... bem, passaram-se não sei quantos minutos, tudo parece ser uma eternidade em circunstâncias desse tipo! Klemperer de repente acordou, e com o senso de humor que ele tinha, perguntou: “Como foi?”

HP - E todo mundo caiu na risada, né?

JD - É!

EPÍLOGO - A BATUTA

Maestro Jacques Delacôte
O maestro Jacques Delacôte virou pra mim e disse:
- Tem mais uma coisa. Uma coisa que eu esqueci de te mostrar.
Ele abriu uma caixinha de madeira cheia de batutas e tirou uma, cuja cortiça já tinha se desfeito restando apenas uma fina vareta de madeira clara. 
- Essa batuta foi do Bernstein.
Quase caí pra trás, e aquela varetinha ganhou vida e história: com essa batuta Leonard Bernstein regeu a ópera Fidelio em 1970, na comemoração de 200 anos da morte de Beethoven, no Theater an der Wien, em Viena.
- Depois Lenny* me deu de presente.
Jacques a usava, costumava reger com essa batuta. Mas um certo dia o tempo estava muito seco e a cortiça se desfez, restando só a madeira fina. Jacques a guarda até hoje na sua caixa de batutas, com muito carinho.

*Lenny é como Leonard Bernstein era chamado pelos amigos.
  

Documentário "Beethoven's Birthday: A Celebration in Vienna with Leonard Bernstein (1970)", sobre essa produção de Fidelio.








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